A "partícula de Deus"
Nos
últimos três dias, os olhos e os ouvidos do País foram bombardeados até
à oclusão por uma espécie de míssil ideológico verbal denominado a partícula de deus.
Noite
e dia, os órgãos de comunicação social, nomeadamente os da radiodifusão
e os da radiotelevisão, papagueavam a ridícula ideia de que um grupo de
patetas andaria nas fraldas dos Alpes, ali perto de Genebra onde em
tempos diferentes labutaram Rousseau, Calvino e Lenine, encafuados os
patetas num longuíssimo labirinto subterrâneo à procura da partícula de deus.
É claro que nunca ocorreu aos papagaios da notícia a lógica conclusão de que, se uns quantos andavam de cócoras à cata da partícula de Deus, então todas as outras partículas, já encontradas, teriam de ser partículas de Satanás, conclusão que decerto não abonaria muito a favor da pretendida omnipotência do proprietário da última partícula.
O que é que está por detrás deste assalto demencial da teologia à ciência?
No
Centro Europeu de Investigação Nuclear (CERN, na sigla francesa),
instalado na fronteira franco-suíça, perto de Genebra, decorrem duas
séries de experiências no Grande Colisor de Partículas, denominadas
ATLAS e CMS.
Entre outros objectivos, essas experiências propõem-se resolver o problema de saber se existe ou não o bosão do modelo standard de Higgs.
O bosão é um tipo de partículas elementares da matéria, assim designado em homenagem ao físico indiano Satyendra Nath Bose.
No
modelo actualmente aceite das partículas elementares, estão
identificados três bosões, mas o físico Peter Higgs entende que existirá
uma outra partícula, relacionada com a massa da matéria, e a que, mesmo
sem ter sido definitivamente detectada e definida, já se dá o nome de partícula de Higgs.
Na
informação fornecida à imprensa no passado dia 13 de Dezembro, o CERN
apresentou o balanço actual da colaboração entre as experiências ATLAS e
CMS sobre o estado actual da pesquisa científica do bosão de Higgs: se o
bosão de Higgs existe, informa o CERN, então o mais provável é que a
sua massa esteja circunscrita, pela experiência ATLAS, nos limites entre
116-130 GeV (gigaelectrões vóltio) e, pela experiência CMS, nos limites
entre 115-127 GeV.
Em resumo: fizeram-se notáveis avanços, mas ainda não se encontrou a partícula de Higgs.
Em
virtude, por um lado, da subida do nível educativo das massas e do
desenvolvimento dos meios de comunicação social nos tempos de hoje, os
avanços da ciência e da tecnologia constituem notícias que as multidões
devoram com prazer.
Os
jornalistas, cuja ignorância é cada vez mais crassa, em consonância
aliás com os salários cada vez mais vis, publicitam as notícias sobre as
pesquisas fundamentais das ciências e sobre os progressos da tecnologia
de uma maneira incorrecta e muitas vezes falsa, invocando sempre a
necessidade de serem entendidos por um ouvinte ou leitor, que eles,
jornalistas tendem também a considerar ignorante.
É esta
relação de ignorância recíproca que é aproveitada pela religião e pela
teologia para introduzir manhosamente o nome de deus onde ele não existe
nem é chamado.
Para
a religião, cada vez mais agonizante, é uma sorte que jornalistas
ignorantes, incapazes de compreender e de explicar concretamente às
massas a pesquisa em curso sobre o bosão de Higgs, lhe chamem, para
arrumar o assunto e vender jornais, revistas e horas de televisão, a partícula de deus.
Assim,
uma notabilíssima investigação acerca de uma das partículas
fundamentais da matéria, que contribuirá poderosamente para ir arrumando
as religiões no caixote do lixo da história, é aproveitada, pela
teologia e pela ignorância, para dar um último fôlego às ideologias e às
práticas religiosas.
Diga-se, de passagem, que o termo partícula de deus
foi cunhado, em 1993, num livro de divulgação popular de ciência
escrito pelo físico Leon Lederman, o qual, com notável olho para o
negócio editorial, compreendeu que o título dado ao livro:”A Partícula de Deus: se o universo é a resposta, então qual é a pergunta”, venderia muito mais exemplares que o título que respeitasse a verdade:”O bosão de Higgs: se o universo é a resposta, então qual é a pergunta”.
A partícula em causa era pois o bosão de Higgs, título que, naquela época, não venderia um único livro.
O
que é que o bosão de Higgs tem a ver com Deus? Absolutamente nada. Foi
simplesmente um nome, irritante mas vendível, para ilustrar os efeitos
ubíquos da partícula no campo de Higgs, gerador dessas partículas, e a
sua importância na determinação da massa dos corpos.
Como
a ubiquidade – estar em dois lugares do campo ao mesmo tempo – foi
sempre considerada pela teologia um atributo exclusivo de Deus, o Sr.
Leon Lederman, melhor vendedor de livros do que de ciência, chamou-lhe,
para efeitos comerciais, partícula de deus, quando, para ser
inteiramente lógico, deveria talvez ter dito não que a partícula era de
Deus, mas que Deus era a partícula, ou seja, que Deus era o bosão de
Higgs...
Como é óbvio, no mundo da ciência, não há um único físico que chame ao bosão de Higgs a partícula de deus.
Peter Higgs, quando se apercebeu que o bosão que andava à procura tinha recebido aquele cognome teísta de a partícula de deus, não gostou nada da brincadeira e não deixou de protestar: “acho-o
embaraçoso, porque embora eu não seja um crente, penso que se trata
daquele tipo de uso de terminologia incorrecta que poderá ofender
algumas pessoas”.
Apeteceria
dizer: deixem Deus em paz, para os que são religiosos; e, se puderem,
expliquem-lhes, de passagem, a natureza e a beleza do bosão de Higgs,
que está prestes a ser apanhado por notáveis homens e mulheres de ciência dentro de um túnel no sopé dos Alpes.
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